Escrito por Mariana Nunes, Gyslla Vasconcelos e Eduardo Faria

Por conta do abundante período úmido, recentemente, diversas usinas hidrelétricas (UHE) do Sistema Interligado Nacional (SIN) entraram em operação de controle de cheias. Para muitas, foi necessário verter água armazenada, como mecanismo de segurança das barragens.

Todo ano, o ONS elabora o Plano Anual de Prevenção de Cheias, que define os volumes de espera, ou seja, o espaço vazio nos grandes reservatórios, para acomodar e amortecer ondas de cheia do período úmido. As usinas hidrelétricas de Furnas, Mascarenhas de Moraes, Luiz Carlos Barreto de Carvalho, Marimbondo e Porto Colômbia abriram seus vertedouros para escoar o excedente de água. A ação, que não ocorria há quase 11 anos no Brasil, foi determinada pelo ONS para controle de nível dos reservatórios, em decorrência das fortes chuvas ocorridas em fevereiro na bacia do Rio Grande (MG/SP). Outras usinas precisaram recorrer ao mecanismo de segurança, como as do rio Madeira e de Belo Monte, além dos grandes reservatórios do São Francisco e a gigante Itaipu, no rio Paraná, que precisaram acionar a segunda calha de vertimento simultaneamente para escoar o excesso de água, o que não acontecia há quase 7 anos.

O papel histórico dos reservatórios além das hidrelétricas

Quando se fala em reservatórios, imediatamente pensamos em usinas hidrelétricas, que têm papel fundamental na geração de energia no Brasil. Contudo, os grandes reservatórios do Sistema Interligado Nacional vão além da função de geração elétrica.

Reservatórios são importantes infraestruturas de gerenciamento de recursos hídricos e a habilidade de gestão das águas define o sucesso das sociedades desde a antiguidade. As primeiras barragens que se tem registro foram construídas há mais de 2.000 a.C. para conter cheias e garantir água em períodos secos, seja para abastecimento ou irrigação. Já a primeira usina hidrelétrica do mundo foi construída somente em 1878, nos EUA. No Brasil, a UHE mais antiga data de 1883, no Ribeirão do Inferno, bacia do rio Jequitinhonha, em Diamantina (MG).

As secas no Brasil

A história de grandes barragens no Brasil se iniciou em 1880, como medida de combate a secas. Por três anos, o Semiárido vivenciou um severo período de escassez, que levou a óbito mais de um terço da população do Ceará. A construção de represas pode mitigar eventos extremos de escassez e de inundações, que tendem a aumentar de intensidade e frequência, segundo os relatórios de mudanças climáticas do IPCC (Painel Intergovernamental da ONU). Reservatórios, então, ao amortecerem ondas de cheias e armazenarem água para posteridade, são capazes de regularizar vazões (reduzem vazões de pico) e elevar vazões de estiagem.

Um exemplo de consequências de severas estiagens é o aumento da intrusão salina na foz dos rios, que ocorre quando sua vazão é baixa a ponto de permitir uma entrada mais agressiva da água do mar. Quando isso acontece, todas as atividades econômicas que dependem de captação de água superficial ou subterrânea ficam comprometidas com a água salgada “rio adentro” e no lençol freático. A gestão dos reservatórios e sua consequente regularização de vazões é importante para amenizar esses efeitos.

A importância dos reservatórios para diferentes esferas

Do ponto de vista eletroenergético, esse tipo de usina hidrelétrica confere flexibilidade ao sistema, imprescindível para respaldar a rápida e crescente inserção de fontes intermitentes. Reservatórios armazenam energia e são aptos a fornecer reserva de capacidade ao sistema (atendimento à demanda de ponta) e prestar serviços ancilares (controle de frequência e tensão, acompanhamento de carga, reserva girante, etc.).

Como serviços não energéticos, eles garantem disponibilidade hídrica para outros usos, tais como irrigação, abastecimento humano, animal, industrial e até mesmo para processos na geração termelétrica, por exemplo, refrigeração e geração de vapor nas caldeiras. Piscicultura (produção de peixes), navegação, turismo e recreação também se beneficiam do armazenamento e regularização de vazões.

Discute-se muito o papel dos reservatórios na matriz elétrica brasileira, mas é essencial levantar também os demais aspectos socioeconômicos que dependem dos seus outros serviços. Em outubro de 2021, atingimos a marca dos 23,56% de armazenamento, com 17% dos reservatórios do Sudeste/Centro-Oeste (responsáveis pelo maior armazenamento do país). Em fevereiro de 2022, após diversas medidas de gestão, acionamento de termelétricas e um período úmido favorável, foi possível atingir 60% do armazenamento do SIN, que confere não apenas segurança energética, como também alimentar, hídrica e econômica. No auge do período úmido de 2023, os armazenamentos alcançam 68,86% para o SIN com 64,74% no Sudeste/Centro-Oeste (17/01/2023).

Por que a abertura de vertedouros das usinas deve ser vista como algo positivo?

Após a pior crise hídrica da história e depois de anos sem necessidade efetiva de controle de cheias em muitas bacias, pode ser visto como emblemático que tanta água tenha atingido os reservatórios a ponto de ser preciso verter. Contudo, é fundamental que os riscos de alagamento sejam gerenciados junto com as autoridades locais, como já vem sendo feito para região afetada de diversas usinas.

Os vertimentos indicam uma situação de abundância e conforto, tanto do ponto de vista da geração quanto dos outros usos. Devemos entender que o vertimento não é um desperdício de água e não representa necessariamente uma falha de planejamento, uma vez que a previsibilidade hidro-meteorológica apresenta grandes incertezas. Mesmo adotando uma estratégia ótima, com todos os recursos tecnológicos disponíveis, não há como evitar o vertimento em cenários hidrologicamente mais favoráveis.

A operação do sistema que evitaria qualquer vertimento necessariamente elevaria os riscos de falta de energia: seria preciso aumentar os volumes de espera (espaço vazio deixado no reservatório para acomodar ondas de cheia). Com tal política operativa, caso viesse a ocorrer o pior cenário hidrológico, o espaço vazio que evitaria vertimento pode justamente ser a energia que faltaria para o atendimento do sistema. Outra alternativa seria construir reservatórios enormes, de modo a acomodar mais água para os momentos de cheias, mas isso não seria nem economicamente nem socio-ambientalmente viável.

É possível otimizar os usos da água?

As chuvas, transformadas em vazões hidrológicas, junto com as condições dos reservatórios, são as principais variáveis a serem monitoras na otimização da operação do sistema elétrico. Essa otimização, considerando apenas a geração de energia elétrica, já é complexa, mas se torna ainda mais complexa quando levamos em conta os múltiplos usos da água. A água é muito mais que um “combustível” para o setor elétrico, e sim um bem público de uso compartilhado, muitas vezes conflituoso, e com diversas interfaces, sinergias e trade-offs entre vários setores da economia. Não há nada mais transversal e multidisciplinar que o uso da água.