Escrito por Eduardo Faria e Mariana Nunes

Na terça-feira (14/11), o Rio de Janeiro registrou uma sensação térmica de 58°C. Embora temperaturas altas sejam comuns no Rio de Janeiro, a temperatura atípica ainda em meados da primavera possui diversas camadas. Esta onda de calor é a 8ª e mais intensa do ano, e já atinge quase 3 mil municípios. Ela pode ser associada, em parte, ao fenômeno atmosférico e oceânico El Niño, em que as águas do Pacífico apresentam um aquecimento persistente e anormal em relação à média. O El Niño está caracterizado desde junho deste ano, e vem causando chuvas intensas na região Sul e precipitações abaixo da média nos outros estados do país. Em uma escala mais abrangente, esta onda de calor se insere também em um contexto de acelerado aquecimento global devido às altas concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera, causando impactos de magnitudes cada vez mais severas e intensificando eventos climáticos extremos, como secas intensas, chuvas torrenciais, alterações nos padrões de vazões, ventos e radiação solar e ondas de calor.

Segundo o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), o número de dias com ondas de calor aumentou de 7 para 52 dias em 30 anos. Além de ondas de calor intensas serem responsáveis pela intensificação de doenças respiratórias, desidratação e mortes, tornando-se questão de saúde pública, elas também impactam a agricultura e a pecuária e exigem cuidado no planejamento da operação eletroenergética do Sistema Interligado Nacional (SIN).

Contexto da capacidade instalada de fontes de energia no País

No passado, as usinas hidrelétricas com grandes reservatórios representavam uma expressiva parcela da capacidade instalada do país, chegando a 87% no final da década de 90. O armazenamento de água era responsável pela prestação de diversos serviços ao sistema elétrico, além da geração de eletricidade, tais como flexibilidade e atendimento à demanda de ponta. Esses serviços eram considerados “inerentes” à fonte, prestados de forma gratuita ao sistema, visto que as usinas hidrelétricas eram dimensionadas para o próprio atendimento da ponta. Muitas dessas usinas foram sobre-dimensionadas ou possuem espaços para aumento da potência instalada, de modo que fosse possível atender picos de demanda ou aproveitar excedentes hidrológicos, aumentando o turbinamento nos momentos necessários.

Ao longo dos anos, o perfil de geração se alterou: houve um aumento expressivo da capacidade instalada de fontes intermitentes (principalmente eólicas e solares, mas também hidrelétricas a fio d’água), que segue em franca expansão, além de não estarmos mais construindo reservatórios com grandes capacidades de armazenamento (regularização). Usinas hidrelétricas de grande porte contam com diversos desafios socioambientais nos potenciais hidrelétricos remanescentes (grande maioria na região amazônica, com baixos desníveis, que requerem imensas áreas alagadas), além de um histórico do setor de má gestão dos impactos negativos em diversos empreendimentos. Assim, pode-se dizer que houve uma estagnação na capacidade de armazenamento de usinas hidrelétricas, enquanto o sistema se desenvolveu e cresceu.

A mudança do perfil de geração trouxe novos requisitos, que antes eram supridos integralmente pelas hidrelétricas de grande porte. A variabilidade eólica e solar exige que o sistema seja capaz de responder rapidamente às mudanças repentinas, e crises hídricas severas exigem o deplecionamento dos reservatórios, deixando o setor elétrico dependente de um ano hidrológico bom para recuperá-los. É importante destacar que, além de contarmos com baterias hídricas que não acompanharam proporcionalmente o crescimento do sistema, elas encontram-se limitadas: existem diversas restrições hidráulicas operativas, de caráter ambiental, regulatório ou de usos múltiplos da água que precisam ser respeitadas, muitas vezes impedindo que os reservatórios exerçam todo seu potencial de flexibilidade para o sistema.

Ondas de calor e a geração no País

Essa semana, em meio a 8ª e pior onda de calor do ano, a carga do SIN bateu recordes em momentos de baixa geração eólica, coincidindo com o período de manutenção das usinas nucleares e a queda natural da geração fotovoltaica ao final do dia. Nesses momentos, a geração hidráulica se elevou, cumprindo sua rampa, dentro dos limites de sua operação (restrições operativas). Mesmo com reservatórios cheios, essa rampa não foi suficiente para garantir o atendimento da demanda, e é nesse contexto que usinas termelétricas se apresentam como relevantes fontes para a garantia da segurança do sistema.

Carga

O comportamento das cargas bruta e líquida de um dia de outubro e outro de novembro, durante a onda de calor, mostra picos de demanda em horários distintos: em outubro, pico de carga bruta e líquida às 19h e, em novembro, pico de carga brita às 14h e de carga líquida às 17h.

Carga Líquida = Carga Bruta – Geração Eólica – Geração Solar

Geração Solar

Em ambos os dias, percebe-se a geração solar fazendo sua trajetória natural: aumento da geração reduz a carga líquida no início do dia e a queda de geração aumenta a carga líquida no final do dia. No dia mais quente da onda de calor recente (14/11), houve uma injeção de 5GW a mais da fonte no Sistema Interligado Nacional, em comparação ao dia 14/10.

Geração Eólica

A geração eólica tem um comportamento mais imprevisível e, em ambos os dias selecionados, a geração apresentou queda durante a elevação de geração solar. No dia mais quente da onda de calor, a geração eólica foi menor.

Geração Hidrelétrica

A geração hidrelétrica acompanha o perfil da carga líquida, modulando a carga e exercendo rampas nos momentos de necessidade. Foi necessária maior geração hidráulica no dia mais quente (novembro).

Geração Nuclear

Em ambos os dias, Angra 2 estava em manutenção e, no dia mais quente (novembro), Angra 1 também estava fora do sistema.

Geração Térmica

Em outubro, observa-se uma geração constante térmica (inflexível). Em novembro, no dia mais quente, foi necessário aumentar a geração térmica, mesmo que a geração hídrica estivesse elevada. Observa-se rampas importantes na parte da tarde e no horário de pico.

PLD

Como esperado, o maior despacho de termelétricas para o atendimento da demanda em um dia muito quente elevou o Preço da Liquidação das Diferenças, mesmo em momentos de reservatórios cheios.

Usinas Termelétricas para atendimento da ponta

Os Leilões de Reserva de Capacidade, inaugurados pelo 1º LRC 2021, buscam contratar usinas termelétricas para estarem disponíveis para geração no horário de ponta, garantindo que haverá potência suficiente no sistema para atendimento da carga de pico. Apesar do importante papel para segurança eletro-energética do sistema, as UTEs não vêm sendo viabilizadas em leilões de energia nova, uma vez que a demanda declarada por distribuidoras vem se reduzindo. Essa redução se dá pela sobrecontratação das distribuidoras, perspectivas de migração para o Mercado Livre e expectativa de aumento da geração distribuída. Contudo, é fundamental que fontes capazes de respaldar a intermitência de fontes eólicas, fotovoltaicas e da própria geração distribuída sejam fomentadas e viabilizadas. Uma vez que hidrelétricas com reservatórios não têm perspectiva de expansão, tornam-se necessárias outras alternativas.

Usinas termelétricas flexíveis precisam de um dimensionamento adequado para atender às rampas exigidas pelo sistema e operarem de modo interruptível, de forma que os desgastes dos equipamentos sejam minimizados e sua operação seja otimizada para beneficiar os sistemas. Outras alternativas são as usinas hidrelétricas reversíveis e baterias. Usinas reversíveis contam com desafios semelhantes às usinas hidrelétricas de grande porte, apesar de seus reservatórios serem consideravelmente menores. Para seu desenvolvimento também é necessária certa evolução regulatória e comercial, de modo que novos produtos possam ser comercializados, como serviços ancilares e de flexibilidade. Usinas hidrelétricas reversíveis não são empreendimentos de geração de energia elétrica e sim de flexibilidade operativa e, por isso, devem ser remuneradas como tal. Por fim, baterias possuem obstáculos relacionados à escala, pois dificilmente trarão impacto significativo em nível nacional. Outro aspecto importante são os desafios relacionados à exploração de metais críticos para produção de baterias e à reciclagem ou disposição final dos rejeitos ao fim de sua vida útil.

Do ponto de vista do combate às mudanças climáticas, com as quais a queima de combustível fóssil em termelétricas contribui, é importante destacar que a matriz elétrica brasileira é uma das mais renováveis do mundo. A parcela das emissões brasileiras referente às usinas termelétricas despachadas centralizadamente representou apenas 2,3% das emissões nacionais em 2021, ano de acionamento de todo parque termelétrico. Em 2022, ano favorável hidrologicamente, essa parcela caiu para 1,6%. Diferente da média mundial (73% das emissões mundiais são relativas ao setor de energia), a maior contribuição para as emissões do Brasil é a mudança do uso do solo e desmatamento. Isso não quer dizer que o setor elétrico brasileiro não deva ter o dever de casa e o compromisso com a redução de suas emissões. É preciso investir em equipamentos eficientes e sempre aprimorar os modelos de alocação adequada dos recursos energéticos, que minimizem não só o custo para o consumidor, mas também os impactos ambientais associados à geração de energia.

Fonte dos Dados: Our World in Data, SEEG, EPE e ONS.